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RESENHA: A palavra que resta, de Stênio Gardel



por Araci Ribeiro de Azevedo


GARDEL, S. A palavra que resta. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.


“Raimundo Gaudêncio de Freitas, traço incerto, arredio ao toque do papel. Lápis danado, domado, e ele escrevia o nome completo pela primeira vez. Setenta e um anos e essa invenção, como ele diz, de aprender a ler e escrever depois de velho” (GARDEL, 2021, p.11). Assim nos é apresentado o herói deste livro. Nosso herói é um homem dos que corriqueiramente chamar-se-ia “bruto”, arredio, “cabra-macho”. Na juventude, porém, Raimundo é confrontado com a dualidade entre o que manda seu coração e o que manda a sociedade e a tradição – é o dilema suscitado pela crescente paixão de Raimundo por seu amigo Cícero versus o que as normas sociais exigem de si.

E quando estas mostram-se impiedosas diante daquela, tudo desmorona, e Raimundo se vê obrigado a largar tudo: sua família, seu lar, Cícero e sua cidade-natal. Na despedida, carrega consigo uma carta escrita pelo amante – mas de que adianta uma carta quando não se sabe ler? “Se não posso ler posso pelo menos tocar, as lembranças e os sentimentos tudo, de tudo que eu vivi com ele e vivi aqui, tudo que estou deixando pra trás está vindo comigo nela” (GARDEL, 2021, p. 81).

Com uma linguagem que se utiliza das construções típicas da oralidade para dar progressão aos eventos do enredo, bem como às memórias e aos sentimentos dos personagens, Stênio Gardel estabelece um vínculo estreito entre o leitor e o delicadíssimo tema que aborda. Assim, a vivência do protagonista, Raimundo, um homem pobre e analfabeto, que carrega o trauma da repressão de sua própria sexualidade desde a juventude, é exposta com tamanha sensibilidade e riqueza de detalhes que se torna impossível não exercitar uma empatia extrema para com ele.

Os eventos da narrativa são expostos de forma não linear. Seguem uma ordem psicológica e, por isso, entrelaçam-se com maestria hipnótica, o que torna a sucessão dos fatos tão crível quanto... crua, humana. O leitor acompanha o passado, a infância e a juventude de Raimundo, o florescer de sua paixão por Cícero, bem como os medos suscitados por esse fato – e, num solavanco, é transportado para um presente geograficamente distante, no qual impera o mesmo Raimundo, “só que diferente” porque agora, ao aceitar-se, torna-se livre. A trama é uma viagem no tempo e uma viagem pelo íntimo do protagonista, é a transcrição do processo de crescimento, de aceitação de si e do outro.

Conhecendo-se esse processo, as paixões, o ódio, o medo e a piedade presentes no enredo magnificam-se, e, por isso o leitor há de se perguntar por que não simplesmente presumir que Raimundo, Cícero, Caetana, Suzzanný, e todos os demais personagens são pessoas reais, que existem cada um com seus dramas e angústias pessoais igualmente válidos?

E aí está a mágica deste livro: quando leitores dos mais diversos perfis são sensibilizados frente à vivência tão singular e socialmente invisibilizada de um homem que busca aceitar-se em si, e afirmar sua identidade diante dos outros; quando leva-se em conta o ato de bravura que é desafiar toda a interseccionalidade de opressões – a pobreza, traumas, o analfabetismo... – que se opõem a essa atitude; e, acima de tudo, quando é levantada a possibilidade de ser, sim, possível o triunfo do orgulho, da autoafirmação, da conquista de sua identidade “apesar de...” todos os obstáculos impostos pelas circunstâncias – quando isso ocorre, pode-se afirmar que a literatura exerceu com maestria sua função social de ferramenta imprescindível à racionalização de experiências sensíveis, singulares, delicadas e humanas, demasiadamente humanas.

“A palavra que resta”, dessa forma, é uma obra necessária não só pela relevância do tema imediato que aborda – a questão da interseccionalidade das opressões versus a construção dos sujeitos –, mas também pelo modo como o faz. É por meio da construção singular de personagens tão marcantes e únicos, Stênio Gardel reinventa e inova as possibilidades de se pensar o surgimento do orgulho e da coragem onde, em quem, e do modo que menos se imagina.

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